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  • Foto do escritorTieta Macau

No pé de Caju

Iê Maior é Deus Camará

Iê Viva meu mestre Camará

Iê quem ensinou Camará

Iê dá volta ao mundo Camará

Iê que o mundo é grande Camará

 RASTO 
  1. Substantivo utilizado sempre que quisermos nos referir a um vestígio ou pegada de alguém, alguma coisa que passou.

  2. Sinal de alguma coisa que pode ser feita ou descoberta;

  3. Sinal, vestígio, pegada, indício, encalço, traço, passo, marca cheiro, trilho;


Escolho começar pelo rastro, não o benjaminiano, mas o rastro deixado na terra dos meus.


Existe um lugar lá no Maranhão chamado Cajueiro, fica na grande ilha de Upaon Açu, conhecida como São Luís. Cajueiro. Uma comunidade majoritariamente negra, rural e pesqueira, com seus vários moradores. Atravessar o trilho do trem da VALE, enxergar uma pequena placa de madeira escrita – à mão mesmo – “Rua Cajueiro”, indica que você está chegando lá.

Uma estreita estrada de terra com espaçados esqueletos-casebres de taipa, barro e troncos cruzados. Muitos esqueletos com placas de venda. A estreita estrada era de terra vermelha, que não se avermelhara por cor natural, mas pelas inúmeras partículas do minério de ferro, exploração roubo da terra, que voavam dos vagões dos trens e se misturavam ao barro, permitindo que estrada ficasse vermelho sangue acobreado. Ao final da parte plana da estrada havia uma bifurcação, à esquerda poderíamos descer em um caminho um pouco mais estreito, no qual surgiria uma casa abandonada, com placa de venda, um tempo depois uma outra casa maior, com plantas e habitada, tempos depois uma vila com pequenos casebres de taipa e algumas crianças a correrem.

No fim desse caminho mais estreito, uma vila circular, com muita sombra das árvores, e uma casa de farinha no meio. A vila com suas casinhas, era rodeada por um alagado, o quintal era o sombreado da frente. Um quintal comum, com muitas folhas e sons de galhos balançando ao vento. Ali era Guarimanduba, uma das comunidades do Cajueiro. Por lá morava um dos moradores mais antigos da região, roceiro, chefe da vila, não falava muito e o pouco que dizia era lei. Logo, não entrei muito de conversa, me contentei em aprender sobre o fundo ser na frente, o quintal de todos. Tenho a impressão de que isso diz muito sobre todos saberem o tudo que precisa ser sabido ali, no quintal comum e unidade.

Voltemos a primeira estrada, a vermelha sangue acobreado, sem descer a Guarimanduba, a rua Cajueiro vira uma grande ladeira, sempre acompanhada de muitas árvores, no fim da descida um grande cajueiro – a planta mesmo – marca a chegada. Dizem por lá que quando vira meia-noite ninguém entra e ninguém sai, porque a árvore resolve se deitar na estrada e incendiar-se, labaredas flamejantes ao céu, e no fundo da mata uma mulher-visagem vestida de branco aparece para levar quem tenta se aproximar desavisado.

As casas começam a aparecer, não mais esqueletos, casas mesmo com gente morando dentro. Várias delas. Algumas poucas eram estranhas, tinham o muro alto, casa de gente que tem dinheiro e que de certo não morava ali desde quando tudo começou. Há uma disparidade de interesses em relação a essas terras. A grande maioria era mesmo de adobe e sem muro, com crianças negras, todas bem queimadinhas de sol e de cabelos “desgadelhados” – tenho gostado do uso desta palavra, de certo que sua origem deve ter sido uma tentativa racista de desmoralizar os crespos cabelos negros, mata rebelde que precisa ser gadelhada. Prefiro pensar como... uma insurreição, uma ação natural de revolta ao padrão colonial de beleza. É bom ter algo de rebelde no corpo, assim como é bom pensar nessa ideia de ter cabelos como raiz, como fio ancestral, como jardim. Cabelos desgadelhados.

Na rua depois do cajueiro – a planta – é a rua onde mora Neném e Nenê. Duas irmãs princesas negras de lá. À Neném devo toda a apresentação dos lugares, se é possível desenhar um mapa em minha cabeça – entradas, saídas, pessoas, histórias – devo tudo a esta fiel guia e companheira dos meus tempos pelas bandas de lá. Seus quinze anos não cabiam o tempo de sua inteligência, sagacidade e potência comunicativa. Me vejo agora um pouco de Neném, sinto falta do tempo passado no Cajueiro, todos os dias encaminho orações e força de guerra, rogo a espada de Ogum e ao machado de Xangô para que as gentes de lá não percam suas terras para um fulano porto chinês ou qualquer outro invasor continental. As linhas abissais não mais se escondem, a capa de bom colonizador já não mais engana. Já não precisamos de espelhos, nos vemos uns nos outros, talvez quem venha do outro lado é que não consiga ver a si próprio, tamanha é a crueldade que constrói a sua história.

Enfim… sinto falto dos meus dias no Cajueiro...

Perto da casa de Neném – cheiro de resistência, chão batido, alguns irmãos, uma mãe e um delicioso arroz de camarão, que a gente come lambendo o beiço – havia (ainda há, se faz importante falar do que resiste agora, neste exato instante, pra que eu não esqueça que para além do meu conforto há outros que estão brigando por seus lares e vidas) a associação de moradores com um “puxado” para brincadas e conversas e logo depois a casa de seu Davi.

Seu Davi, (Siô) Davi era e é um senhor com aproximadamente 1,70 de altura, um pouco curvado, com seus vários anos, agora um pouco mais, muito bem conservado por sua genética perfeita, mesmo com o esforço constate das lutas, tem um restinho de cabelo já embranquecido em sua cabeça, uma voz tranquila, palavras certeiras, uma pessoa resistência.

Ele vivia sozinho, mas era como se fosse muitos, como se reverberasse tantos.

O CAJUEIRO EXISTE! O CAJUEIRO RESISTE! O CAJUEIRO RESISTE!


Siô Davi era fazedor de rede…. Tentou me ensinar a fazer nós, mas aqueleis feitos com as mãos não aprendi com tamanha destreza. Hoje, tempos depois posso ver que teço redes de outras formas.

Se a gente descer a rua do Cajueiro até o fim, toda a sua longitude, a gente chega numa praia, de um lado a vista apenas para o mar, algumas zangarias e currais; do outro uma barca grande meio encalhada, enferrujada, alguns peixes mortos, esbugalhados e ao longe (não tão longe) o grande Porto do Itaqui, aquele mesmo que pertence a Princesa Ina… O Porto do Itaqui e seus inúmeros navios e cargueiros.

A Praia do Cajueiro não tem muitas ondas, tem a coloração marrom… marrom como todas as praias da ilha, com o manguezal bem próximo, um pouco enlameada em algumas partes, praia mangue. Uma praia de muitos segredos.

Dizem que em noite de lua é comum encontrar um cachorro grande por lá, um cão que começa a te acompanhar se por um acaso resolveres andar a noite na beira da praia, dizem que a cada passo que se dá o cachorro aumenta de tamanho, capaz inclusive de ficar maior que um homem adulto. Dizem também que pelas beiras existe uma bola de fogo, a Curacanga, um borrão circular e flamejante, que roda pela praia e leva as pessoas consigo.

É nessa mesma praia que do alto do Egito, lá onde ficava o antigo terreiro do povo de santo, que se via aparecer nos dias de Santa Luzia, nas noites de 13 de dezembro, a embarcação encantada de onde desciam as sagradas princesas encantadas, as Tobossi, rumo às sacerdotisas que lhe esperavam no topo do Egito. Vinham da praia bailar no alto, ao toque do baião, Baião de Princesas…


“Ô lá vem negra, lá vem Baía… no terreiro de vovó Luzia, dança sabiá, dança siricó e a cobra assubia… olha Ita, olha Ita, olha Ita nas ondas do mar... A sala tá cheia minha gente como é que eu entro agora? Eu entro minha gente eu entro com Deus e nossa senhora!”

Bailavam a noite toda com seus cantos e curas, voltavam a beira da praia e sumiam mais uma vez em seu navio encantado… Dizem que quem tem olho bom pra ver, ainda consegue a graça de enxergar ao longe a embarcação atracar no meio das pequenas ondas.


Voltando a rua do Cajueiro, se não descermos direto rumo à praia, se seguirmos à esquerda na rua da escola, seguiremos sentido Andirobal, outra comunidade do território. No meio do caminho a direita na estrada de terra e árvores altas, tem uma porteira, no alto da porteira a casa de Dona Filomena. Senhora de muitas frutas, plantas, cachorros, galinhas… cozinha bem viu? A galinha da terra feita por ela é de deixar babando. Perto da casa de Dona Filó as árvores conversam a noite como os povos originários – não me perguntem como é essa conversa, apenas falo como escutei –, no meio da mata contam que surge um clarão de luz azul, que de todo lugar se vê, contam ainda que as vezes aparece o gritador, algo que corre no meio da madrugada a gritar. Há quem diga que o gritador é um passarinho que grita como gente.

No fim da estrada da casa de Dona Filó tem uma outra praia. Antes de chegar à beira surge alguns esqueletos de casas, ruínas de algumas quase construções e um tanto escondido há também sambaquis. Essa praia tem uma visão muito ampla apenas para as águas, muitas pedras, algumas encostas embarreadas. O barro de lá tem várias cores de argila amarelo açafrão, vermelho terra, vermelho, rosa marrom, bege, mostarda, bordô, todas elas misturadas, tem também. A riqueza do barro é tanta que acho até que Nanã tem uma morada por lá.




É a minha praia preferida do Cajueiro, sobretudo quando não é hora de pegar a pescaria… quando somente a parte sem humanos da natureza vive. Esta praia faz silêncio em mim…

Um pouco antes de chegar a praia, tem uma casa, uma com um amplo terreno, um banco feito de tronco embaixo de uma mangueira, uma cadeirinha perto do tronco. Lá no fundo do terreno eu vi bananeiras também, uma horta e mais mangueiras. Nesta casa morava seu Joca e Dona Diná. Ela não era muito de conversar e sim de oferecer a gentileza necessária pra fazer qualquer um ficar. Fiquei um tempo largo por lá. Seu Joca bem magro, com a idade que já avançava os oitenta, cabelo ralinho embaixo de uma boina, a sua coluna já o curvava à minha altura, de passo lento e olhar profundo, com o tempo guardado no gesto.


- Tudo bem? (pergunto)

- Vou indo! No tempo, como o mar.

- Há quanto tempo o senhor vive aqui?

- Desde quando não tinha estrada pra chegar por terra, a gente vinha pelo mar, vim pescando de Alcântara e por aqui fiquei.


Um tanto de conversa foi fiada, fiquei mais a ouvir o que de pouco em pouco seu Joca falava. E tudo dito por aqui, até agora se resume entre as redes e esta conversa…


- Posso lhe convidar pra falar um pouquinho sobre o que o senhor sabe, sobres as memórias do Cajueiro junto com os outros pescadores?


Ele sorriu curtinho, olhou pra baixo e falou quase num suspiro.

- Convidar pode. Mas não sei de nada não… só sei deixar rasto.

- O quê seu Joca? - perguntei, pois não havia entendido o fim.

- Rasto, só sei deixar rasto!


Fiz cara que não entendi e ele mais uma vez repetiu.


- Sim, rastro… só sei deixar rastro!


E junto a frase ele rastou o pé no chão de terra, olhei para baixo, observei o gesto, Seu Joca havia deixado a marca de sua pegada. Um rastro.


À toda comunidade do Cajueiro, em especial a Neném desbravadora, Siô Davi fazedor de redes e á seu Joca fazedor de rastro.


 

Escrita com alguns traços de invenções, escrevivência como nos ensina a mestra Conceição Evaristo.

Algumas imagens-rastro intituladas Acidentes Geográficos: Série de acidentes, rastos de um dança chamada Ancés (nascida do Cajueiro). Alguns fragmentos detectáveis e guardados da partilha dançada.

Areia e terra colhida em cada dança Ancés, de lugares distintos do país. De areia de construção a areia de encosta de rio.

Cinco mapas feitos com suor e saliva em tecido, com intervenção de carvão e verniz

De 2017 - 2020

Registros: Daniel Pelegrin

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