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  • Foto do escritorTieta Macau

Flor do velho


Rolei na pedra, abenção Atotô, seu Xaxará a ferida secou!

A flor do velho me curou…


O velho é quem tem uma das danças mais bonitas. Ele aprendeu com o tempo, observando por baixo da palha. Por isso a Oya ventou no seu corpo pipocas, para vê-lo dançar alegrias.

Logo no comecinho do adoecimento coletivo eu gravei um vídeo contando um Itan do velho. Aquele que narra como na partilha de poderes o velho recebeu a peste. A mesma que acometeu o mundo a uma mortandade, e que levou as pessoas a oferecerem preces e oferendas a todas as deusas e deuses. Contudo a humanidade só conseguiu a cura quando lembraram do velho e o saudaram… o senhor da peste e o senhor das mandingas.


A cura não é imediata… sedações são.


Imediato é fastfood, sabe o que mais? Fast Food não estraga, não deixa a vida passar, nem mosca pousa. É como um defunto que não fede…

Que coisa! No asé o que cria larvas, fungos é também o que tem vida… é o que vira húmus para fazer semente brotar.


Eu tive uma velha que se foi. Uma velha templo lá do quilombo de Tubarão. Ela estava na ilha. Eu na cidade do sol, longe e trancada na minha casa. Agora eu tô aqui nas pedras da minha cidade um pouco mais perto da casa que era da velha, na barriga da serpente… um pouco longe da minha casa física com todos os meus penduricalhos e um pouco mais perto da minha casa de asé. Sem boa parte dos meus penduricalhos! No começo eu estava cheia vazia e agora vazia cheia…

Um grande exercício de viver com menos… tanto lá quanto cá.


A velha partilhava do mesmo povo que eu… ela foi e eu senti que eles vieram. A partida da velha fez dançar minha coluna e uma das vértebras fez trazer de volta ao coração os tempos do eu criança com as velhas, as duas que foram… a que foi antes e a que foi por agora. É bom olhar pro meus pés, que envelhecidos antes da hora me fazem lembrar dos pés das duas. Vai ver ando dançando igual… fazendo dos rastros delas as minhas pegadas...




Tive um velho que também se foi. Um amigo professor e um professor amigo. Das coisas que ele falava de teatro e ritual também vieram… até achei uma foto das pernas cabeludas dele com uma botinha de exército de fazer o Negro Cosme… Lembro muito dos coros e das velas…



O balaio chegou, cadê branco? Não tem branco não tem mais sinhô...


Acho que a peste chegou porque a gente deixou virar ruína a memória. Esse meu velho amigo sempre falava da memória e do Anjo da História. Eu chamo de Sankofa… a peste chegou porque a gente desaprendeu plantar os nossos pés nas pegadas…


A flor do velho me curou…


Eu conferi marcado na agenda até o dia 91, mas sei que foram 141 os dias que passei na casa com meus penduricalhos a Ju a Vick e o Bru, os quatro gatos Ibsen, Marisco, Angola, Moçambique, a cadela Pina e todas as outras plantas do quintal da espada de Jorge ao mandacaru do Velho.

Teve um tempo ajustado em comum pra todas nós. A casa com todos os penduricalhos e viventes ficou como um corpo só, das insônias às luas…

Precisei abandonar um pouco esse corpo pra voltar a pisar melhor e fazer da minha dança uma maneira de sustentar o céu.

Eu precisei sair do corpo-casa e me transportar pra barriga da serpente. Dizem que aqui embaixo da ilha de São Luís, mora uma serpente encantada que afundará a cidade quando a cabeça encostar com o rabo e o Oroboro se formar. O mesmo se fala do touro encantado na ilha dos lençóis, o touro que é Dom Sebastião, touro brincado num ciclo infinito que se um dia desencantado fará a terra vir abaixo. Precisei me molhar nas águas da Princesa Ina senhora dos reinos dourados debaixo do mar… entrar nos terrenos das encantarias que formam a terra que me pariu.

Das curvas e encantarias eu sou filha da serpente… É ela o meu mais velho!


Dizem que quem sente raiz fincada na ilha é quem descende da família dos velhos…

O velho da peste e da cura é irmão do meu velho-serpente.


A flor do velho me curou…

Quando os velhos se foram eu adoeci do ar. Da falta de ar. Faltou ar na cabeça e tentou faltar o da respiração… Eu comecei a ver todos os números. As virtualizações de todos os que foram vida. Eu vi os montes de outros de mim sendo levados pela peste e pela bala… ainda tô vendo! Vi aquele amontoado de posts, reposts e bandeiras. Vi a tentativa de resolver o que é estrutural fazendo cópia mal feita do fast food enlatado e só na rede social. Faltou o ar na cabeça…

Agora mesmo a aldeia de uma conhecida tá pegando fogo… faltou ar na cabeça falta ar.

E se a peste me pegar? Se eu precisar de hospital como os meus velhos precisaram? Que estrutura irá me amparar se tudo der errado? A do sistema único de saúde? A dos capitães do mato? Faltou o ar, falta o ar...

Por isso eu saí da casa. Para pisar na terra. Para andar na barriga da serpente e ver os ocasos da ilha no mês de setembro aliado as ventanias da minha mãe.

Quando faltou o ar da cabeça eu só pude pedir ao velho! O Ilê - como a gente chama casa e chama terreiro - é uma das poucas estruturas que se precipita quando um corpo negro ameaça cair. Meu quilombo é a barriga da serpente. Meu ilê minha casa de cura.

Fazer o movimento inverso, reverso em direção ao umbigo.

Ao umbigo de mim

Umbigo da terra

Umbigo dos saberes que me compõe

Uma espécie de vontade vomitar tudo que a empresa colonial me fez engolir.

Só penso que quero parar de acreditar… acho até que devíamos fazer um grande movimento coletivo em retorno aos nossos umbigos… não os dos egos isolados, mas os umbigos raízes… voltar à terra e coletivamente deixarmos de acreditar…

Comunidades violentadas Campo Grande Minas, Cajueiro, Alcântara, Macaco, Canudos, Palmares, Guajajara, Tupiniquim, Marubo, Yanomamis, Krateus, Kaiapós, Krikatis...mais uma, mais uma, mais uma, fogo, bala fogo… Sem terra… mas a terra sempre será nossa, e não deles… os outros.

A gente precisa desacreditar...

A grande empresa não merece ser chamada nem de URUBU, o Urubu tem uma função cosmológica. A empresa... ela é a própria invenção de podridão.

Um corpo coberto por guarda-sóis assim dizia a manchete e as vendas continuaram. A empresa fede.

A gente precisa desacreditar.

A gente precisa desacreditar.

Para então desestabilizar e fazer ruir.

A cada vez que me volto a pensar nos meus velhos percebo as extensas aberturas entre passados, presentes e futuros… O contemporâneo que se forma. Ancestral é transtemporal!

Fundação do entendimento da diferença, é sua própria filosofia… não há ancestralidade sem alteridade… Quem sabe da ancestralidade já entende de rizoma há tanto tempo, que nem o corpo que não tem órgãos conseguiu acompanhar…

Não há caminhos sem espirais.

Não há criação sem encruza.

Por isso é preciso desacreditar

Para entender paradigmas.

Para reaprender os feitiços, o sopro e a saliva.

Fazer um esforço coletivo para pararmos de sustentar esse imaginário da grande empresa.

Destruir todo imaginário da empresa!

Aniquilar os sonhos do capital!

Mandigar, capoeirar, gingar, dar rasteira… mas acreditar a gente precisar parar de acreditar…para então reaprender os feitiços, o sopro e a saliva.

Para saber falar com o velho.

É bom estar por aqui, me faz pensar melhor como pisa…

Por aqui a gente faz pisadinho que mexe o quadril pra dançar o boi, o tambor, o cacuriá…

eu sou eu sou eu sou eu sou eu sou jacaré poiô!! Sacode o rabo jacaré sacode o rabo! Eu sou jacaré poiô!

Pisar direito e repetir muitas vezes que sou esse jacaré pra ver se incorporo em minhas entranhas a força desse gigantesco bicho que com uma rabada faz desmoronar qualquer ameaça…

No fim sei bem que...

São sete encruzas, sete rezas, sete espadas, sete santos, sete encantos, sete velas, sete folhas, sete ventos, sete saias, tudo isso vezes sete antes que qualquer mal me alcance! Antes que qualquer mal nos vença!

Eu tenho uma renca de parente me amparando… E sabe o que mais? De algum modo a gente se ampara junte.

E o senhor do tempo é um velho e ele caminha sem pressa com suas danças de cura…

Que possa eu aprender a andar e dançar como o velho e fazer de seus rastros minha pegada.


Rolei na pedra, abenção Atotô, seu Xaxará a ferida secou! A flor do velho me curou…


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