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  • Foto do escritorTieta Macau

Rangendo os dentes: desviando padrões logo mais a maré avança

Atualizado: 29 de mai. de 2020

(Indicação: escute antes de ler ou lendo, tu escolhe)

Núbia Rodrigues - Obscuros às retinas


A semana começa, chega ao fim, números aumentam, números. Há quase um mês escrevi sobre a estratégia do “shift+delete”, a de fazer sumir completamente qualquer outro não humano e isto inclui o aniquilamento de todas as suas potências seja qual for sua arte, “do pescar ao palco, da feira ao escritório, o comando é o mesmo: o gatilho puxado é pra matar!”

Faz muito pouco que foi 13 de maio, sendo hoje 21. Faz muito pouco que foi 1888, sendo agora 2020. Das cidades em que passei a maioria possui uma rua “treze de maio”. E essa data? O que mudou? E essa data? O 13 de maio como data histórica em quase nada nos serve, um mito inventando e ainda assinado por uma áurea princesa. Abdias há muito nos disse que o 13 do 05 são os dígitos que demarcam o “mito do africano livre”, a lei que não passou de um assassinato em massa, camuflado em menor escala pela historinha.“ Os africanos e seus descendentes que sobrevivessem como conseguissem”, pois o plano de embranquecer a pátria, antes do novo milênio, extinguindo negros e indígenas continuaria a todo vapor. Continua… continua. E o que mudou? E essa data?

14 de março de 2018? 18 de maio de 2020? Fevereiro de 2019? 7 de abril de 2019? Setembro de 1842? E essa data? E essas datas? Hoje? Quem? Ontem? Ontem? Hoje? Amanhã?

Alguns eventos escolhidos pela grande mídia pra mascarar o cotidiano. Do lado de cá são cenas do café da manhã, sentidas como um pedaço da gente que se vai todo dia. Metralha carro, família, casa, fuzil, bala direta na fronte, fogo, forca, incêndio.

A gente range os dentes, a gente range os dentes. O “shift+delete” continua, continua em sua insistente repetição fordista em apertar teclas e puxar gatilhos.


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Um dia rangi tanto os dentes que resolvi parar de dançar. Não estavam diretamente a me caçar a pauladas no meio da rua, mas a “cordialidade que é o disfarce pusilânime do desprezo da branquitudei”, estava ali posta nos olhares de quem compartilhava os lugares que eu atravessava como única ou uma das poucas negras permitida a estar. Rangi tanto os dentes, pois os choques traumáticos dos racismos cotidianosii, imobilizaram o meu mover. Rangi tanto os dentes que meu corpo passou a tremer involuntariamente, pois as datas não chegavam a mim como eventos, pouco menos como números, se aparentavam mais com membros destroçados.


Rangi tanto os dentes e resolvi parar. E não foi sobre parar a dança, mas sobre parar a euforia do mover. Desviei um padrão.


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DESVIO PADRÃO, 2018, Tieta Macau. Imagens: Dinho Araújo


Desvio Padrão é uma fórmula utilizada na estatística, uma medida que demonstra o grau de dispersão de um conjunto de dados, é ela quem indica o quanto um conjunto de dados é uniforme. Quanto mais próximo de zero, mais homogêneo são os dados. Um exemplo: o padrão de um bairro classe média alta aqui das redondezas, é a galera se formar, ter um bom um carro, uma "boa família", "mães felizes", plano de saúde, viagens internacionais, morrer de velhice ou de doença (depois de todas as tentativas de prolongar a vida do enfermo), até a vida eterna lhes é prometida com suas eurocristãs pregações. Se alguém por lá morre vítima de bala é um desvio do padrão.

O padrão imposto pela branquitude para os outros de mim, é a cela e a morte antes mesmo dos 25, é a mãe chorar pelo desmembramento de si, pela família destroçada, é o corpo achado numa vala ou ensacado sem nome no IML. Um corpo negro na universidade, um corpo negro vivo após os 30, um corpo negro com diploma, um corpo negro no palco, na direção, na publicação, no planalto, fora da margem do shift+delete, é um desvio padrão. O padrão para o negro imposto pela branquitude é sempre o apagamento.


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“Virou estatística, antes de virar notícia. Canta minha “parente” Núbia! “Virou estatística, porque era pobre e preto, tava rolando o tal do preconceito.” 600 anos, 6 milhões, 1 a cada 23 minutos, 70% por ano... um peso temporal, real que ao ser explicitado em números virtualiza-se, e perde a qualidade tempo-espaço, mas não a de unidade para quem a vive. O palpável, a solidez de cada número, o vazio de cada dado é um tempo incabível em qualquer contagem.


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Assepsia de um corpo negrx. Tentativa número um de chegar entre 60 e 1800. 60/1 Contorno transparente de uma unidade esterilizada. Quantos 8 me impedem de chegar a 5 milhões e pouco? Quantos 8’s nos impedem de [dançar=pensar]? Em quantos 8’s um corpo negro não consegue se enquadrar?


DESVIO PADRÃO, 2018, Tieta Macau. Imagens: Dinho Araújo


Rangi tanto os dentes e resolvi parar. E não foi sobre parar de dançar, mas sobre parar a euforia do mover. Desviei um padrão. E foi quando dançar fez mais um sentido, além de “lembrar que a operação de igualar o ser da dança ao movimento – por mais senso comum que isso possa parecer hoje – é na realidade um desenvolvimento histórico razoavelmente recenteiii.” Assim como é cotidiano, marcado na história do ocidente, alocarem um corpo negro que dança no esteriótipo da alta performance, do frenesi, do corpo suado, exotizado, desejado, animalizado, pronto para ser caçado e calado.

Acordei em frenesi, com um frivilhão no corpo como diz um outro parente em dança. Gosto dessa coisa de parente, sabe? É como cruzar na rua e de repente uma mana ou mano preto sorri pra você, mesmo sem te conhecer. A Kilomba nos lembra bem que esse ritual coletivo do cumprimento, de reconhecer parentesco no outro, é uma espécie de reparação com a experiência histórica da ruptura e da fragmentação. Uma tentativa de reparação do trauma colonial trazido pelo tráfico negreiro e os anos de regime escravocrata, o que nos traz um desmembramento com as nossas matrizes familiares, de tal forma que nos leva a familiarizarmo-nos uns com os outros. A história nos trouxe aqui assim como nos leva a uma saudação curativa, local de pertencimento e de reconstrução de novas teias. Tenho encontrado muitos parentes. O Rúbens Lopes ( que é esse meu parente) é como uma entidade quando se põe a dançar – sua coluna fala, apresenta escritos dos outros nossos que nos precederam – em suas aulas ele sempre fala de deixar o frivilhão tomar conta de nossas colunas e existências, frivilhar, pôr-se a ferver. Fogo! Aqui o fogo que transforma, o fogo sob os domínios da justiça de Xangô.

Pois bem… acordei com o frivilhão, pronta a tornar chama esta escrita e pôr os dedos a apontar, a recordar, a fazer vida aos quems que o shift+delete virtualizou em números e estatísticas. Acordei com duas imagens frivilhantes, dessas que reconstroem teias e nos fazem acreditar no poder de nossas pretas magias. A primeira da Bia Ferreira cantando e pondo em verso os pensamentos de Mbembe, depois de passar toda letra da violência rotineira ela lança a mão do último verso mandinga: “Espero que entenda e comece a sua parte! Porque não vai chorar sua mãe, nem vai chorar a minha. Povo preto se armando com a palavra e a escrita. Não vai chorar sua mãe, nem vai chorar a minha. Povo preto se armando, conhecimento é a saída.” Ela jogou o verso em fogo de lá, por aqui fez ferver mais uma, desviando o padrão e fazendo nosso o que um dia foi ferramenta de colonização: a leitura e a escrita. Em uma mão meu dedo aponta pra quem pucha o gatilho e na outra os dedos fervem feitiços escritos.



Mil litros de preto, Lucimélia Romão. Imagens: Renan Omura


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Sirenes. Camburões negreiros. Jovem, negro, 17 anos, 14 anos, 12 anos, alvejado pela polícia. Denúncia!

A segunda imagem frivilhante foi a da performance Mil Litros de Preto, de uma parente que mora um pouco mais longe daqui de onde moro, a Lucimélia Romão. Há quase um ano havia escrito um pensamento sobre sua ação a uma revista mexicana de arte contemporânea. Gostaria muito que as nossas preces, as minhas, as delas, as de todas as mães fossem atendidas e que sua aparição não necessitasse ser mais atual. Mas é.



Mil litros de preto, Lucimélia Romão. Imagens: Edouard Fraipoint

Mil litros de uma maré que transborda, mil litros que escorrem dos olhos cor molhado das mães, que escorrem em sangue nos muros esburacados das narrativas brancas. Lucimélia, negra, sua mãe e sua tia, negras, outras mães e mulheres negras que jorram. Águas que atravessam corpos, que atravessam o peito em sangue esburacado à bala. A cada sirene, a cada gota transbordante dos sete litros de líquido espesso vermelho, somos arrastados à naturalidade do genocídio “NEGRO" - e também KRIKATI, TAPEPA, TUPINAMBÁ, CANELA, GUAJAJARA, KRENAK, YANOMAMI, TRMEMBÉ, INDÍGENA -, tal como sugere Abdias e Negro Bispo independente do regime a intenção "CLARA", sempre foi de nos expropriar, levar ao fim os nossos. Arrancar do corpo negro (e do corpo não branco) inclusive a experiência da morte enquanto elo ancestral. Litros que jorram a vida das mães que ficam, do jovem que vai, que lavam em dor as almas e correm em prece a Aruanda, para que ela carregue os seus. É a certeza que podemos ter, (e mais uma vez por aqui repito, pra que fique cravado com prece e feitiço) “que mesmo que queimem nossos símbolos, não queimarão os significados, mesmo que queimem nosso povo, não queimarão nossa ancestralidade” (Nego Bispo).


A maré de Lucimélia me lança sempre aos números, as vidas neles não virtualizadas, as mães. Um dia rangi tanto os dentes, tremi tanto o corpo vendo a minha gentileza muitas vezes ser confundida por docilidade. Bicho dócil. Os donos das teclas têm a magia tão frágil e a inteligência tão curta, que não entendem mandingas, não alcançam fundamentos. Se apropriam sem aprender e assim não sabem que com gentileza e sem mover força alguma, na mandinga, Oxum envenenou um exército inteiro e salvou seu povo. Ao se transformar em bicho, em búfala a Iansã ganha a força para defender seus filhos em muitos planos, ao que sei são nove.

Há muito pouco foi 13 de maio sendo hoje 21. Sim, o 13 de maio, enquanto história para nós é quase nada, enquanto raiz ancestral é tanto. Aqui em diáspora é dia das Pretas e Pretos Velhos, dia de cura orquestrado pelos senhores de Aruanda, os mesmos que recebem os nossos lá no Orum, com seus rosários e patuás. Para muitas casas de Asé, 13 de maio é também dia de Nanã. Saluba Nanã! Benção vovó! A mãe mais velha, que nos cuida e guarda na passagem e na vida, que nos cria e recria em sopro e barro. E mais uma vez a teia prevalece, o nosso grande elo ancestral mais uma vez nos faz continuar para além das necropolíticas. Nos gestos, nas danças, nos feitiços, cantos, nos textos, infinitos somos uns nos outros. Só queria deixar um aviso para quem não sabe os segredos das águas:

A maré tá cheia, logo mais ela avança.

 

Lucimélia Romão acordeonista, artista de rua e performer. Vive e trabalha em São João Del Rei-MG. Começou a desenvolver trabalhos ligados ao teatro aos 16 anos de idade. Aos 21 cursou Artes Dramáticas na Escola Municipal Maestro Fêgo Camargo, em Taubaté, e teve seu primeiro contato com arte performática. Em 2014, inicia a graduação em Teatro na UFSJ-MG, e inserida em projetos de pesquisa e extensão passa a desenvolver trabalhos performativos. Durante sua graduação é contemplada com Mobilidade Acadêmica, em 2017, na UFMG, começando sua pesquisa sobre instalações, teatro negro e performance negra. Desde então, desenvolve trabalhos de perspectiva político-social voltados para a denúncia da mortandade da população negra brasileira.


Núbia Rodrigues é promessa da cena regueira do Maranhão, a artista traz músicas autorais em seu repertório que apresentam um resgate à sua ancestralidade, além de uma atmosfera dançante, com um tom de denúncia em forma lírica e uma energia contagiante.


Bia Ferreira militante negra, cantora, compositora e multi-instrumentista brasileira.


Rúbens Lopes é artista, professor e pesquisador em dança, formado pelo curso técnico em dança do Porto Iracema das Artes e pela licenciatura em dança na Universidade Federal do Cearpa. Iniciou seus estudos em dança em 2005 sendo bailarino de escolas e companhias de dança em Fortaleza e da Decidedly Jazz Danceworks (Calgary/Canadá). Dirige a Cia Anagrama desde 2008, onde desenvolve a pesquisa de movimento em dança do “Corpo Lânguido”. Atualmente coordena o programa de extensão em danças africanas ancestrais no Instituto Federal do Ceará – IFCE Campus Fortaleza, compõe o quadro de professores do curso técnico em dança do Ceará, do curso de iniciação à dança contemporânea (Prodança), do curso profissionalizante em danças cênicas (Escola Livre Balé Baião/ Itapipoca) e da O Casulo escola de dança. Sua pesquisa em dança abrange a Técnica de Graham, Safety Release, Gaga Moviment e as corporeidades negras. Dentro do ativismo no Movimento Negro pesquisa os gêneros dancehall, jazz e algumas danças ancestrais africanas. Rubéns é membro do Fórum de Dança do Ceará, da Juventude Negra Kalunga, do Coletivo CREWolos e do Núcleo de Estudos Afro Brasileiros e Indígenas – NEABI Campus Fortaleza.


iNASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: perspectivas, 2016. p.79 e p.92

iiKILOMBA, Grada. MEMÓRIAS DA PLANTAÇÃO: episódios de racismo cotidiano.

iiiLEPECKI, André. EXAURIR A DANÇA: Performance e política do movimento. São Paulo: Annablume, 2017. p.22

SANTOS, Antônio Bispo dos. Colonização, Quilombos, Modos e Significações. Brasília: INCTI/UnB, 2015.

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